segunda-feira, 29 de março de 2010

Quando dar a outra face é pecado


Conhece-se a maneira como os estudantes alemães aproveitam o tempo pois mesmo quando comem vão lendo os manuais. Obviamente que para os seus colegas do sul da Europa, muito mais emotivos e sonhadores, as refeições são sagrados momentos de convívio.
Isto conduz fatalmente a atitudes bem diferentes face aos problemas que a vida coloca. A história que se segue é verdadeira. Mostra como reagimos mais com o coração do que com a razão e como isso pode levar a situações caricatas. Há dias, a casa de campo de pessoa das minhas relações foi assaltada. A GNR tomou conta do caso e deteve o gatuno. Entrou em contacto com a dona da casa, a quem explicaram quem (o fulano já estava referenciado) e o que lhe tinham furtado, sobretudo enlatados e refrigerantes. A boa da senhora, de coração junto à boca, disse aos guardas que não queria nada do desgraçado, não apresentava queixa e nem sequer queria o que lhe tinha sido furtado. Pelos vistos o furto não é crime público e a GNR em vez de levantar um auto e levar o larápio ao MP activou a linha de emergência social. Assim, o excelentíssimo gatuno em vez de ser punido como merecia, teve tratamento VIP, foi levado com o produto do roubo, de automóvel, devidamente acompanhado, até à residência da família, tudo a expensas do Estado. Nesta história, toda a gente agiu mal. A minha amiga que tomou uma atitude piedosa e de coração generoso para com um desgraçado mas de legitimidade duvidosa, a GNR que não soube ou não quis dar a volta à situação e a Linha que fez um serviço que de todo não lhe cabia. O crime compensou com a prestimosa colaboração de todos incluindo as autoridades. Não houve o correctivo merecido e possivelmente o autor irá repetir a graça. Esta história só é mesmo possível entre nós, mostra como somos, ainda que a sorrir não ficamos nada bem no retrato.

domingo, 28 de março de 2010

Trabalhar para o boneco


Fechado o ciclo do Império, Portugal ficou sem objectivos, e salvo em dois efémeros momentos, nunca mais teve uma verdadeira estratégia nacional. O remate desse ciclo teve implicações à escala planetária e ainda é muito cedo para que se faça o competente comentário histórico. Como durante séculos houve um objectivo havia fatalmente um planeamento, uma organização e um controlo. Nunca se definiu novo paradigma permanecendo o espírito e todas as sequelas correspondentes ao extinto modelo. Digo isto sem qualquer rebuço pois todos sabemos que o povo português é boa gente e trabalha com elevados índices de produtividade em toda a parte menos portas a dentro. Só porque não temos organização democrática capaz. Temos de facto uma forma republicana e democrática de exercício do poder político, mas não no sentido mais amplo: com instrução cívica, justiça célere e coesão social. Como não é possível levar os ricos a verem como vivem os pobres e levar os pobres a verem como trabalham os ricos, acontece que todos conhecemos empresários falidos a viver impune e principescamente no Algarve, procuradora adjunta apanhada em flagrante a roubar, gestores de empresas públicas a ganharem dez vezes mais que Obama, o poder judicial a querer exercer o poder executivo e 1/5 da população a tomar antidepressivos.

É imperativo para todos nós obrigar os vígaros corruptos, com ou sem alvará, e todos os antidemocratas a respeitar as mais elementares regras do respeito pelo próximo, não faças ao outro ou à comunidade o que não queres que te façam a ti. É um trabalho difícil, mas possível. Basta querermos e não ficarmos por pias intenções de desejar que isso aconteça. Despenalize-se o corruptor activo e vamos ver o que acontece.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Informática e volatilidade


Dos petróglifos primitivos à máquina que utilizo para escrever este post calcula-se que tenham passado 17 000 anos. Os que produziram aqueles textos usaram uma tecnologia de tal modo eficaz e resistente que manteve perceptível a mensagem até hoje. Nenhum dos que agora escreve, por mais original e premiado, e por melhor que seja a maneira de se por de perfil para a história, terá a presunção de ser lido e compreendido daqui por outros tantos milhares de anos.
Uma das características deste tempo será a brevidade. Tudo é breve, descartável, nada fica, e na História da humanidade este período não ficará registado como um momento de grandes feitos, mas por episódios de volatilidade e mudança. Suponho que isto é um bom argumento para que a nossa vida seja um exercício de humildade.
Vemos as fotografias dos nossos trisavôs obtidas a partir de sais de prata, mas as nossas mais antigas e a cores já estão pouco nítidas e nem os nossos filhos as verão daqui a mais umas dezenas de anos. Informática e volatilidade, às vezes, parecem ser as duas faces da mesma moeda.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Aziago Março


Evocando coisas que o foram

E viver as que o não chegam a ser,

Preparo a depuração,

Catarse, pura limpeza.

Suspenso acima da mágoa e do remorso,

Que beleza!


Careca… crescido

Não entro no cortejo dos tristes coitados,

Nem da felicidade fui banido.

Jamais peregrino da mágoa e da desdita

De olhos e nariz pingados.


Coração ao alto,

Confiança em mim e no futuro,

Ainda que duro,

E a vida um contínuo sobressalto.


Evocando coisas que o foram

E viver as que o não chegam a ser.


quinta-feira, 18 de março de 2010

Rio negro



A vida é o bem mais precioso de que dispomos e a morte (esse nada absoluto) evidencia a sua fragilidade. As reticências postas a um auxílio, a dúvida quanto a um coração que palpita longe, a consciência duma dor que sabemos existir, tudo é preferível à certeza do óbito.
Mais pobre, mais vazio e roubado sou como um rio. Um rio sem pontes. Nasço na serra e caio por entre fráguas, sobressalto-me e caio, caio, caio vezes sem fim no planalto onde encho, engrosso e depois me espraio e espreguiço só e doridamente. Não corro nem vou desaguar ao mar, desvaneço-me, evaporo-me: inodoro, insipido, incumbustivel e incomburente, mas negro como um tição. É assim que me sinto.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Carta aberta a um Lisboeta




Podia começar esta carta aberta contando o caso que lhe deu origem. Mas não, vou tentar escrever apenas mais um post. Só que este tem destinatário.

As nuvens e humidade deram-nos folga. Vieram as cores e com elas a beleza manifesta da vida.

Hoje de manhã cerca das 10 horas vi estas duas lindas pernaltas, julgo que cegonhas, no Parque Polis, e às 6 vi o espectáculo da luz do por do sol a brincar com o gelo formado pela água que escorre das pedras do Torreão. Eis algo só possível nas Terras Altas, na cidade da Guarda, em locais da malha urbana. No resto do país, mais rico, mais desenvolvido, talvez menos bonito e mais embrutecido nada disto se vê. Como pode haver algum hipotético leitor mais cosmopolita e menos dado às coisas simples, mas tão masoquista que leia isto, esta Chancelaria informa que as coordenadas são 40.32N e 7.16W. Pode introduzi-las no GPS que cá chegará, já que a palavra Guarda parece levar alguém apenas ao posto da GNR. É como se fosse para um safari (mas sempre em auto estrada), mais agasalhado. Aqui compreendem-se várias línguas, incluindo o português e somos garantidamente hospitaleiros.

Apetece-me dizer que até a ignorância e estupidez têm que ter limites.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Cinzento


Gosto de quase todas as cores desde o vermelho ao violeta, abomino o cinzento e penitencio-me no castanho. Desde o inicio do Outono que respiramos este cinzento deliquescente.
Quero dar largas à imaginação e voar, mas há este permanente cinzento que me prende ao chão. Quero pensar de maneira positiva mas uma angústia cinzenta discorre livre e negativamente.
Ameaçam-nos agora, não com um futuro doirado ou negro, mas cinzento.
Nem sequer me atrevo a chorar, temo que as lágrimas sejam cinzentas.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Ao vento


Grossos fios prateados, chicotes que estalam ao capricho deste velho amigo barulhento, companheiro de noites povoadas de medos e sombras de quando era menino. Diga o que disser a ciência, para mim és mais que ar em movimento. És mais que o sopro duma divindade qualquer.

Hoje, quase como sempre, vens acompanhado dessas fantásticas cordas de água que fazem com que os telhados pareçam chapéus instáveis. Ameaças e abanas o poste da minha entrada, afasto o carro.

Mas estou velho pá, já não te temo.


Entrei em casa, tirei as luvas
Cheias de nuvens e cinzentos.

Ficam no móvel à entrada da sala
Gemem medos. Depois soltam estrelas

De fantasia...

A seguir, atirei com o frio do casaco

Para cima duma cadeira.

Rio-me ao vê-lo a aquecer-se enroscado

Noutra roupa, mais seca e limpa
A contar ...fantasias.

Ouço quieto

Os seus dramas e ficções em harmonia.