sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Nem só os Anjos são da Guarda


Há dias, escrevia aqui que, na R da Trindade 8, viveram santos. Não era uma figura de estilo, era uma verdade factual. Tomemos um caso. Uma pessoa que nunca foi à escola, a única entre os seus pares que não sabia ler, embora dotada de fina inteligência, memória e sentido de humor, era dona do 6.º,7.º e outros femininos sentidos. Desde muito menina posta em casa da irmã mais velha, a quem chamava madrinha, ajudando a educar os sobrinhos, servir com devoção filial o cunhado a quem reverencialmente tratava por padrinho. Pessoa que nunca teve nada de seu, nem o nome, pois até isso lhe tiraram numa fútil quezília de baptismo. Enquanto pôde, frequentadora assídua da Igreja sem nunca ter sido beata ou com resquícios de farisaísmo, bem pelo contrário, brincava carinhosamente com algumas figuras mais ridículas. que comparava às sufragistas. Viveu desinteressadamente para os outros. Sempre a conheci um tanto surda e coxa, mas sempre muito atenta. Mudou fraldas e coleou camadas e camadas de sobrinhos directos, netos e bisnetos. De simplicidade absoluta, alheia aos conflitos no médio oriente dizia-se, quando a aborrecia, vítima das minhas judiarias, acentuando que eu era um judeu errante, mostrando a educação de determinada época. Pessoa que conheci sempre defensora e preocupada com o próximo, fosse ele quem fosse, era ela que tomava como suas, as dores, angústias e desejos de todos. Em momentos de apuro de cada um de nós, estivéssemos longe ou perto, punha os Santos à Lareira, isto é, punha pequenas lamparinas acesas a iluminar imagens de santos, que colocava em semi-círculo. Sofria com os que sofriam e também era capaz de rir com os que riam. Um ser social, que conhecia e falava com todo o mundo, foi desde muito cedo, mercê de doença nunca tratada, confinada ao limite interior da casa. Não é preciso procurar muito nos escaninhos da minha memória cenas de muito amor e de muita graça: as imagens mais queridas e as mais saborosas anedotas da minha meninice envolvem-na sempre. Porque sei que está, se passeia ou paira no melhor sítio, lá no lugar reservado aos melhores da nossa espécie, posso aqui publicamente dizer, Bem Haja Tia Aninha, nome por que todos a conheciam, verdadeira santa, por nos teres dado tanto a troco de coisa nenhuma.

2 comentários:

Dialino Esteves disse...

Gostei muito! Também eu a conheci...bastante mais tarde. Recordo-me dela à braseira, sempre com as muletas ao lado.
Rezava por todas as almas e, ao que ouvi, pela alma dela também, não fossem um dia esquecer-se de o fazer...
Hoje, quando as coisas se tornam mais negras ou correm menos bem cá pela terra, não é meu hábito rezar. Em vez disso falo com ela e lembro-lhe só que era altura de dar uma mão. A verdade é que nunca me faltou amparo nesses momentos.
Por isso acredito que também há anjos na Guarda e outros que sem lá terem nascido, aí viveram muitos anos.
Que saudade!...Que recordações!...

Dialino Esteves disse...

Parabéns, Julito!
Parabéns por dois motivos: 1.º por ser o dia do teu aniversário e embora te tenha já felicitado e feito os votos habituais, quero que fique escrito, para que conste e nunca duvides, que te AMO muito...muito…muito;
2.º porque o que escreveste sobre a nossa Tani foi de facto um momento de inspiração, daqueles que ultimamente te ocorrem e me deixou com um nó na garganta.
Retrataste-a tal como ela foi e como eu a imagino no Céu, no cantinho mais doce, mais confortável, num enorme cadeirão fofo, com uma temperatura maravilhosa, que o Senhor tem guardado para os Grandes.
Ela está lá sentadinha sem dores, com o seu imenso sorriso a ver-nos cá em baixo e a pensar:
- “Fizemos realmente uns ricos casamentos”.
E fizemos mesmo, Julinho!
Nem tu nem eu seríamos o que somos se não fossem os nossos companheiros…
Bem hajas, Tani, pela tua acertada previsão!
Tenho uma foto no meu quarto, em que a nossa Ana está ladeada pelas nossas filhas. Com o seu enorme sorriso desdentado, olha para mim, que invariavelmente lhe digo um “segredinho de pé de orelha”.
Somos gente feliz porque na Guarda fomos amparados por este Anjo da Guarda, que nos guarda lá no Céu.
Bem hajas, Julito.
Beija-te a tua irmã que muito te ama
Bebé.

P.S. Hoje é dia de festa no Céu porque há 13 anos, outro Anjo que nos deu vida foi viver para junto da nossa Ana.
Sem querer comparar a vida de uma com a da outra, ambas tiveram episódios de “gata borralheira”, embora em épocas diferentes e em diferentes lugares, igualmente nunca tiveram vontade própria e nem sempre em vida as suas virtudes foram reconhecidas. Duas mal amadas? Talvez.

Marianela Esteves