segunda-feira, 3 de novembro de 2008

R da Trindade 8 - Parte I


Construída na antiga judiaria foi casa de judeu com toda a certeza: porta larga para o comércio e porta estreita para a residência. Era a Casa das casas, a essência de todas as casas. Era grande, tinha história, calor humano e era o centro de todo um Universo. Gerações ali foram criadas.
Aquela casa foi o domicílio duma família, foi escola, sopa dos pobres, igreja, casa de saúde e repouso. Sei do que falo. Vivi lá.
A maioria das recordações de infância e adolescência, os sonhos de grandeza e sacrifícios, receitas infalíveis para a salvação da humanidade ali nasceram e ali foram acarinhados na loucura dos meus verdes anos.
Falar daquela casa é possível, mas de quem lá viveu, não me acho capaz. Posso referir-me a alguns dos frequentadores, que serão hoje o seu único registo histórico, a pen-drive ainda disponível.
Acedia-se à casa por uma escada, entrava-se no hall e à esquerda um pouco mais longe a cozinha. A mesa oval de madeira, sempre posta, o fogão de lenha sempre aceso.
Na escada, nos dias marcados, juntavam-se pessoas e ouvia-se: - Estão ali os pobres de tal terra, ou num tom mais sombrio, estão ali os doentes do Sanatório. Isto não correspondia exactamente à verdade, porque a verdade era mais pesada. Estavam ali os doentes que tinham estado no Sanatório e de lá tinham sido expulsos. Deserdados da saúde e da sorte a todos os níveis, mantinham-se na Guarda pelos seus bons ares. Todos tinham a sua própria louça, que era lavada e guardada à parte, num velho armário de tom azul.
Escola selecta de muitos que se preparavam para o exame de admissão ao Liceu, verdadeiro tirocínio para quem queria voar até ao ensino secundário.Também foram centenas de candidatas a Regentes dos Postos de Ensino, que habilitadas com a 4ª classe, ali fizeram uma espécie de pós-graduação que as preparava a fazerem um “Exame de Estado”. Se aprovadas, passavam a Senhoras Regentes, espécie de professoras/monitoras num tempo antes da pílula, em que a população se reproduzia com acinte, e em que a doutrina oficial era que o português médio devia saber ler escrever e contar.
Durante muitos anos aquela casa, numa área suficientemente grande, foi a única com telefone, o que só por si a tornava um serviço público.

2 comentários:

Júlio Valentim disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Dialino Esteves disse...

Reconheço esta casa que tão bem descreves, não por fazer parte do meu imaginário, mas por ser parte integrante das nossas vidas.
Aqui aprendemos a viver de afectos e hoje somos como somos devido ao tudo que ali vivemos e aprendemos.
Na primeira parte foste muito feliz na forma como escreveste. Parabéns, mano!
Aguardo ansiosamente a segunda parte.
Lá do Céu os nossos antepassados sorriem…
Beijos da tua irmã
Bebé