quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Respirar


…vem sem medo, por mais forte que sejas, chego para ti. Não vou entrar em confronto, vou bailar contigo. Todos os teus movimentos agrestes não conseguem ser uma agressão, transformo-os num movimento gracioso, em pura arte. O maior combate ficará como a coreografia duma dança. E rirei, rirei sempre da tua fúria.

Inspira e expira, uma e outra vez.

Não saberei reproduzir de cor, mas se não foram estas foram outras semelhantes, as palavras ditas por um harmónico residente do lado de lá do espelho, para outro que depressa se afastou. O que ficou parece ser perito em artes marciais e instruído em filosofia Zen. Magro e transparente, com uma pêra incaracterística, que mais se adivinha que se vê, feições mal definidas por sombreadas, é uma personalidade surpreendente. Diz teimosamente para eu respirar e quando questionado responde que apenas aguentarei três minutos sem oxigénio. Interrogo se haverá ali alguma antevisão reservada, solta uma risada e diz-me para beber, sobretudo água pois se não beber ao fim de três dias riscam-me do mapa, e se não comer ao fim de três semanas dou o triste pio. Sustenta uma série de ideias no mínimo bizarras, mesmo com pouca ética, como quando afirma que quem mata, não faz mal nem bem, diz ser esse o seu caminho, e quanto a caminhos este exemplar tem muito que se lhe diga...
Surpreende-me quando pergunta se conheço a alegoria do semáforo e sem esperar que responda vai explicando: vês o vermelho e páras não comas hemoglobina, vês o verde avanças e pasta, porque reconheces a clorofila.
A cadência da conversa é irregular. Não me deixa dizer que não pasto, que me alimento de diversos produtos Ora mais devagar ora mais depressa nunca emudece e dá poucas deixas.
Já meio tarde, peço-lhe um vaticínio, ele assentiu, e disse-me que o faria sobre uma coisa que todos gostam. Pensei que fosse sobre algum clube de futebol, não foi, mas fez com que me risse na mesma. Disse que esta casa há-de ser um Dojo, uma espécie de templo Tao. Se sei o que é o Tao nada mais longe da verdade possível... Imaginei a minha mulher e os meus filhos monges de Shaolin, de manto amarelo e cabeça careca…
Uma gargalhada sonora mereceu semelhante evocação, pois é difícil mesmo com muito boa vontade imaginá-los em semelhantes preparos.
Desapareceu deixando atrás de si uma espécie de canção cuja letra deve ter pedido emprestada a um poeta cubano: há quem morra chorando com dez dias no leito/ há quem morra cantando com dez tiros no peito.

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